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Ilustração de 1410 para The Canterbury Tales, de Chaucer: estilo saboroso, não reeditado |
Traduzir é fazer circular o conhecimento, a beleza e a inventividade para além das fronteiras linguísticas e culturais. As limitações inerentes à tarefa são compensadas pela possibilidade de relativizar a maldição de Babel. Por mais poliglota que alguém seja sempre dependerá dos tradutores para saciar sua curiosidade literária.
Nelson Rodrigues, em tom de brincadeira, dizia-se "monogâmico" por saber apenas o português. Por opção, ou falta de opção, esta é a condição da maioria dos brasileiros. Daí a necessidade de traduções, de preferência benfeitas.
Não falta trabalho para os tradutores, mesmo se pensássemos só em obras de valor já reconhecido, que não foram traduzidas ou cujas versões para a língua portuguesa já se esgotaram, permanecendo nessa condição até hoje.
Um escritor como Henri-Frédéric Amiel (1821-1881), por exemplo, precisa ser lido em nosso idioma. Ou melhor, nós, brasileiros, merecemos a oportunidade de ler Amiel em português.
De fato, já tivemos a oportunidade no passado. Do seu absurdamente extenso Diário Íntimo (Journal Intime), com mais de 14 mil páginas, foi publicada uma seleção de trechos em 1947, com tradução de Mário D. Ferreira Santos, pela editora Globo, de Porto Alegre, republicada na década de 1960 pela Ediouro. Antes ainda, em 1944, em Portugal, publicaram-se fragmentos do Diário, com tradução de Teresa Leitão de Barros.
Interesse comercial
Este é um caso de esquecimento, entre muitos, e talvez perdoável porque, argumentaria um editor, não há interesse comercial pelos textos de Amiel, além de escasso interesse literário por esse autor até na vida acadêmica de hoje.
Que seja. Mas outros esquecimentos, relativos a uma série de clássicos incontestáveis, apontam para uma falta de memória ou desconhecimento puro e simples que a vida cultural de país nenhum merece!
Pensemos no The Unfortunate Traveller, de Thomas Nashe (1567-1601), romance genial, apontado como obra-prima da sátira inglesa. As infelicidades de um viajante somam-se à observação sem ilusões da condição humana no contexto europeu renascentista. Este e outros trabalhos de Thomas Nashe talvez tenham ficado à sombra da produção de grandes escritores da época, em especial William Shakespeare. Contudo, aí está um motivo a mais para que seu nome venha à luz em língua portuguesa. Quem se aventura a fazer essa feliz viagem?
Outro inglês injustamente esquecido entre editores e tradutores nacionais: Geoffrey Chaucer (1340?-1400?), excelente contador de histórias com uma visão realista e crítica do seu tempo. A bem da verdade, o brasileiro já recebeu pelas mãos do tradutor Paulo Vizioli os saborosos The Canterbury Tales (Os Contos de Cantuária), com selo da editora T.A. Queiroz, em 1988. Houve em 1991 uma primeira... e última reimpressão. O livro esgotou-se, mas quem o leu sabe que o leitor não se esgota. Ao contrário. Em Portugal, nos anos oitenta, Olívio Caeiro traduziu alguns contos, e só. De lá para cá, Chaucer não teve outra chance entre nós.
Em sebos
Incompreensível não existir ao alcance do leitorado brasileiro, hoje, o clássico italiano Promessi Sposi, de Alessandro Manzoni (1785-1873). A tradução do jornalista e crítico de arte Raul de Polillo da década de 1950, pela Editora Jackson, e a de Marina Guaspari, que circulou na década de 1970 pela coleção "Os Imortais da Literatura Universal", da Abril Cultural, encontram-se só em sebos.
Os Noivos é história bem contada, com variados personagens e peripécias, muitos obstáculos a vencer e um autêntico final feliz, numa vibrante recriação da Itália seiscentista. Otto Maria Carpeaux não hesitou em afirmar que se trata do "maior romance histórico que jamais se escreveu". Por que não relançar esse antigo best-seller, mesmo não aparecendo nele vampiros e lobisomens?
O merecido prestígio de autores de um dado país pode jogar para escanteio escritores de primeiro time. É o caso, na vida editorial brasileira, de Mikhail Lermontov (1814-1841). São tão incontestáveis as qualidades de Dostoiévski, Górki, Tolstói, Gogol, Tchekhov... que Lermontov e sua obra principal, Um Herói do Nosso Tempo, não têm lugar nas nossas estantes. A solução, para quem deseja conhecer autores estrangeiros invisíveis em língua portuguesa, é recorrer ao texto original, ou às edições inglesas, francesas, espanholas...
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O francês Perec, em 1978: nome da modernidade com obras ainda desconhecidas |
Idiomas distantes?
Uma possível justificativa para que grandes autores não tenham suas obras traduzidas em língua portuguesa é a distância linguística. Alexandros Papadiamantis (1851-1911), um dos maiores prosadores gregos da modernidade, ainda não chegou às nossas livrarias pela porta do nosso idioma. O centenário de sua morte em 2011 poderia, no entanto, inspirar alguma editora a dar esse presente ao leitor brasileiro.
Certamente não será um presente de grego, embora tradutores de outros países já tenham afirmado que o texto de Papadiamantis requer maestria redobrada.
Papadiamantis, ele próprio tradutor, escrevia em katharevousa, uma proposta de purificação do grego de palavras estrangeiras (especialmente do turco) e reaproximação do grego antigo, a que acrescentava regionalismos de desafiante equivalência em outras línguas e culturas.
Também o holandês seria um idioma distante, dificultando, por exemplo, a tradução de um clássico como Max Havelaar, de Eduard Douwes Dekker (1820-1887), conhecido pelo pseudônimo Multatuli (do latim multa tuli, "muito sofri").
A obra, naquele momento, colocava em xeque a política colonial praticada pelo governo holandês nas Índias holandesas (Indonésia), sem se prender unicamente a esta motivação política, ou não se tornaria literatura para além das circunstâncias históricas.
A dimensão panfletária e engajada é valorizada e ao mesmo tempo superada pelo estilo (satírico, humorístico) e pela inspiração humanizadora.
Hungria e Pérsia
Outro idioma distante, o húngaro. O escritor e jornalista Géza Gárdonyi (1863-1922) é leitura obrigatória nas escolas da Hungria e relido por muitos de seus compatriotas ao longo da vida.
No Brasil, graças a Paulo Rónai, que era "um brasileiro made in Hungary", aproveitando o sugestivo título da dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Letras USP, em 2009, por Zsuzsanna Filomena Spiry, pelo menos dois contos deste autor foram traduzidos e publicados: "A história de uma canção" e "O homem da garganta de osso". Mas aí começou e terminou a difusão de sua obra.
Em outras paragens, Géza Gárdonyi é conhecido, sobretudo, pelo romance As Estrelas de Eger, aventura que envolve a narração do cerco de Eger, em 1522, uma das batalhas decisivas que Hungria travou contra a dominação dos turcos.
Na literatura persa, para irmos um pouco mais longe, há um outro autor ainda "virgem" para os tradutores brasileiros. Trata-se de Sadeq Hedayat (1903-1951). O seu romance A Coruja Cega, elogiado pela crítica internacional, é o testamento literário desse Kafka iraniano, em que a dor da incomunicabilidade e as obsessões interiores chegaram a ameaçar a ordem social do país: este livro foi proibido durante um bom tempo no Irã.
Tão perto, tão longe
Autores estrangeiros próximos a nós, pelo idioma ou por terem nascido no século 20, e que alguma vez foram traduzidos, aguardam o momento de ganhar mais espaço em terras brasileiras.
O norte-americano Robert Coover (1932) já estreou em versão brasileira faz duas décadas, com o obsessivo Espancando a Empregada, traduzido e posfaciado por Jair Ferreira dos Santos (Editora Espaço e Tempo, 1982), livro hoje esgotado. Mas Coover fez mais do que espancar a empregada. Seus livros
se multiplicam.
Só para mencionar os menos recentes, pensemos no hilariante e erótico Pinocchio in Venice (1991), nos contos de Pricksong and Descants (1969) sobre as alienações do homem moderno, e no romance experimental Gerald's Party (1986). Traduzidos, seriam uma forma de reapresentar ao brasileiro este autor considerado um dos mais importantes da literatura dos EUA contemporâneos.
O escritor peruano Alfredo Bryce Echenique (1939) também já estreou no Brasil... e sumiu. O único livro aqui publicado, Um Mundo para Julius, traduzido por Remy Gorga, filho (Editora Rocco, 1987), só será encontrado nos sebos e a preços muito baixos, para nossa tristeza ou alegria, dependendo do ponto de vista com que analisemos o fato de uma obra dessa magnitude ser adquirida por R$ 10 ou menos. Mas o fato a lamentar é que esse autor, e outros tantos da América Latina, estão fora do nosso horizonte.
Tão perto e tão longe são também aqueles títulos ainda não traduzidos de autores estrangeiros que já circulam por aqui, dialogando conosco em português. Entre centenas de nomes, lembremos o do genial Georges Perec (1936-1982), de quem já conhecemos A Vida Modo de Usar (tradução de Ivo Barroso, pela Cia. das Letras, 1991), Um Homem que Dorme (tradução de Dalva Laredo Diniz, pela Nova Fronteira, 1988) e A Coleção Particular (tradução de Ivo Barroso, pela Cosac Naify, 2005).
Muitos títulos de Perec, no entanto, esperam tradução há décadas, como Les Choses (1965), seu primeiro, que tematiza a felicidade inacessível, a felicidade na sociedade das coisas e do consumo, a felicidade como o impossível necessário.
Uma outra obra, que representa, aliás, um belo desafio para os tradutores, é La Disparition (1969), sobre o desaparecimento de Anton Voyl, e de como seus conhecidos tentam reencontrá-lo. E se descobre então que seu desaparecimento está ligado à perda da vogal "e" (o trocadilho do sobrenome do personagem é uma pista: Voyl/voyelle/vogal). Todo o livro foi escrito sem essa letra - a mais comum no francês -, e daí porque a tradução do título, embora imediata, não seria O Desaparecimento, em que a letra "e" aparece três vezes. O Sumiço seria uma opção melhor.
Esse texto lipogramático (o lipograma consiste em omitir determinada letra do alfabeto num texto) com 250 páginas pode servir-nos, enfim, como metáfora para a ausência de livros traduzidos em português. O sumiço, antes mesmo que aparecessem, de autores e obras significativas em nossa língua deve nos levar a procurar... e traduzir.
DesafioTranscrevo aqui o começo do primeiro capítulo de La disparition, acrescentando uma sugestão de tradução, uma provocação, na verdade, à espera de que você, tradutor(a) profissional, se anime a ir em frente:
"Anton Voyl n'arrivait pas à dormir. Il alluma. Son Jaz marquait minuit vingt. Il poussa un profond soupir, s'assit dans son lit, s'appuyant sur son polochon. Il prit un roman, il l'ouvrit, il lut; mais il n'y saisit qu'un imbroglio confus, il butait à tout instant sur un mot dont il ignorait la signification."
Anton Voyl não podia dormir. Ligou a luz. O Jaz marcava 20 minutos da madrugada. Suspirou profundo, aprumou o corpo na cama, apoiado na almofada. Apanhou um livro, abriu, mas não captava a história, tudo muito confuso, topava toda hora com palavras cujo significado ignorava.
Gabriel Perissé é professor do Programa de Mestrado/Doutorado em Educação da Uninove (SP)www.perisse.com.br